O condomínio pode impedir a circulação de prestadores de serviço?

A criação de normas de acesso aos condomínios residenciais devem respeitar diferentes leis para evitar práticas abusivas e discriminatórias

No cotidiano dos condomínios residenciais, muitos moradores contratam serviços de profissionais de diversas áreas. De entregadores de encomendas até autônomos que atendem dentro dos lares, os trabalhadores podem se deparar com regras de circulação nesses ambientes. Nesse caso, tanto os profissionais quanto os habitantes do local devem compreender o que está dentro da lei e o que não deve ser limitado.

Uma pesquisa de 2023 realizada pela Abrasel e pelo Sebrae demonstrou que 76% dos brasileiros fazem pedidos de alimentos e bebidas por meio de aplicativos de entrega. O dado mostra uma forte presença do delivery na rotina de muitas pessoas.

“A circulação de entregadores em condomínios tem se tornado um tema cada vez mais discutido no Brasil, especialmente diante do crescimento exponencial dos serviços de entrega, impulsionado por aplicativos e pelo comércio eletrônico”, comenta Roberta Terezinha Pinho Leite, mestre e doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Antes de entender sobre as normas de condomínios voltadas ao acesso do local, vale compreender o significado de “portadores de serviço”. Conforme Roberta, também professora de Direito Civil e de Direito do Consumidor, esse termo se refere, justamente, às pessoas que transitam no ambiente condominial para prestar algum tipo de serviço ou entregar produtos, mas que não são habitantes ou funcionários fixos do edifício.

“Esse conceito é importante, pois, nos condomínios, a circulação de pessoas é uma questão de segurança, organização e convivência”, diz. Ainda, Roberta explica que o termo ajuda na definição dos seguintes fatores:

  • Políticas de controle de acesso;
  • Regras de segurança;
  • Horários de entrada e permanência;
  • Acompanhamento obrigatório por parte do morador ou funcionário;
  • Permissões para uso de elevadores sociais ou de serviço.

Além disso, vale citar que os portadores de serviço englobam diversos perfis profissionais, como:

  • Entregadores de alimentos e bebidas ou encomendas;
  • Prestadores de serviço eventuais (como eletricistas, encanadores, pintores, entre outros);
  • Diaristas ou faxineiros que trabalham em unidades autônomas;
  • Técnicos de manutenção (voltados para internet, ar-condicionado, TV a cabo, gás, entre outros produtos);
  • Motoristas de aplicativo que realizam entregas;
  • Profissionais autônomos que atendem dentro das residências (como personal trainer, esteticistas, entre outros).

Quais são as leis de condomínios para a circulação de portadores de serviço?

De acordo com Roberta, no Brasil não há uma lei específica e única sobre a circulação de portadores de serviço dentro de condomínios. “No entanto, essa questão é regulamentada por um conjunto de normas legais, aliadas à convenção condominial, ao regimento interno, à jurisprudência e aos princípios constitucionais”, aponta.

Ela diz que o Código Civil brasileiro é o principal regulador de locais com unidades residenciais ou comerciais que possuem proprietários, mas que compartilham áreas em comum no ambiente do condomínio (chamados condomínios edilícios).

Conforme a professora, alguns artigos do código permitem que os condomínios criem normas internas sobre o acesso e a circulação de prestadores de serviço, inclusive impondo restrições. “Sob a ótica do direito de propriedade e da autonomia privada, os condôminos podem, por meio da convenção condominial e do regimento interno, estabelecer regras sobre a circulação de pessoas nas áreas comuns, inclusive restringindo o acesso de entregadores e outros prestadores, principalmente em piscinas, academias e em atividades que não condizem com o serviço prestado”.

No entanto, ela ressalta: “Tal restrição deve respeitar os direitos fundamentais e não pode resultar em discriminação ou tratamento indigno, conforme os princípios da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade. Ou seja, não pode haver nenhum tipo de limitação baseado em cor, raça, gênero, emprego ou religião”. E deixa claro que os princípios constitucionais também se aplicam e limitam o poder regulamentar dos condomínios, ou seja, regras internas não podem contrariar leis superiores.

Roberta destaca também a Lei nº 4.591/1964 (Lei dos Condomínios e Incorporações) – outro tópico referente à legislação condominial. Embora muitos de seus dispositivos tenham sido substituídos pelo Código Civil de 2002, alguns ainda são válidos, especialmente:

Art. 10: Veda o uso das unidades condominiais de forma prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores ou aos bons costumes.
Esse artigo dá base para que os condomínios organizem o acesso de terceiros, fundamentado na segurança e na ordem interna.

Veja outros tópicos referentes à legislação condominial. Confira abaixo:


1. Normas de Segurança (ABNT NBR 16.280 e NBR 5.670)

Embora voltadas, principalmente, para obras e reformas, essas normas da ABNT orientam a administração condominial sobre o controle de acesso e movimentação de pessoas em áreas comuns. As regras servem como referência para a elaboração de procedimentos de segurança.

2. Regimento Interno e Convenção Condominial

Esses documentos definem as regras específicas de cada condomínio, ou seja, são os próprios moradores que vão definir as normas de convivência naquele local, tais como:

  • Locais onde prestadores de serviço podem circular;
  • Necessidade de identificação na portaria;
  • Horários permitidos para acesso;
  • Exigência de acompanhamento por funcionário do prédio ou pelo morador.

É essencial que essas regras não sejam abusivas ou discriminatórias, pois, caso contrário, podem ser anuladas judicialmente.

3. Jurisprudência

Os tribunais vêm decidindo que:

  • Condomínios podem restringir acesso desde que não violem direitos fundamentais;
  • Moradores têm direito de autorizar o acesso de prestadores diretamente à sua unidade;
  • Regras que humilham ou constrangem entregadores podem ser consideradas inconstitucionais ou ilegais.

Até que ponto os condomínios podem limitar a circulação de pessoas?

Em nota publicada em 2024, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que 13,3 milhões de endereços do país estão em condomínios. O dado faz parte do Censo 2022, baseado no Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE).

Com isso, quando se trata da limitação de acesso de prestadores de serviço em espaços de condomínios residenciais, é importante que as restrições tenham definições fundamentadas em leis e sem a violação de direitos constitucionais. A professora Roberta Leite fala que o condomínio pode realizar as seguintes limitações:

Acesso às áreas em que os moradores e convidados autorizados podem entrar, como salões, piscina, academia, entre outros;

A circulação de prestadores de serviço, definindo rotas específicas – como uso de portões ou elevadores de serviço –, desde que estejam previstas no regimento interno ou convenção; sejam razoáveis e não discriminatórias; e que garantam o direito do morador autorizar o acesso à sua unidade.

Em relação ao que não deve ser feito, ela elenca as seguintes situações e comenta sobre cada uma:

  • Proibir um morador de receber alguém em sua unidade: o direito de propriedade garante ao morador o poder de receber quem desejar, inclusive prestadores.
  • Criar regras discriminatórias ou vexatórias, como: proibir entregadores de usarem elevadores sem justificativa técnica; obrigar pessoas a usarem apenas escadas, mesmo com carga pesada; e discriminar os trabalhadores.
  • Impedir o acesso com base em aparência, cor de uniforme ou tipo de serviço: isso pode configurar discriminação, punível civil e criminalmente.
  • Impedir circulação em situações emergenciais, como, por exemplo, um técnico de gás ou eletricidade em situação urgente, mesmo fora do horário comum.