Últimas Publicações

A demanda foi julgada parcialmente procedente

Justiça anula multas aplicadas por condomínio a proprietário que alugou apartamento via plataforma virtual

SENTENÇA
Processo nº: 1002020-75.2021.8.26.0659

Classe - Assunto Procedimento do Juizado Especial Cível - Cumprimento Provisório de Sentença

Requerente: M. A. F. L.

Requerido: Condomínio Estância Marambaia

Prioridade Idoso

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Juan Paulo Haye Biazevic

Vistos.

Dispenso o relatório.

Inépcia. O pedido condenatório para que os funcionários da demandada tratem futuros e eventuais locatários com urbanidade é inepto. Inviável a condenação a obrigação de fazer baseada em comando genérico do tipo “tratar bem” ou “tratar com respeito”. Comando nesse sentido seria inexequível e alcançaria qualquer situação ao bel prazer do intérprete. E não é só. A generalidade de um comando dessa natureza se assemelharia à generalidade de leis, pois elas são, como seria um tal comando, atos normativos com a capacidade de incidir sobre fatos futuros e indeterminados. Os comandos proferidos através de sentença, ao contrário dos comandos abstratos das leis, devem ser concretos, devem indicar as particularidades da lide de forma clara e direta, permitindo a compreensão da maneira pela qual o comando legislativo genérico ganha contornos de concretude através da intervenção do Poder Judiciário. Eventuais condutas abusivas apenas deverão ser solucionadas após a violação, provavelmente através de ressarcimento moral, servindo eventual condenação como mecanismo de repreensão a condutas futuras.

Revelia. Citado e intimado (fls. 34 e 88), o demandado não compareceu à audiência de conciliação (fl. 89). Deixo de acolher a justificativa de ausência de fl. 90. A parte estava ciente da audiência. Apesar do erro de digitação na indicação do domínio do e-mail indicado à fl. 36 (@gamil.com), o link foi enviado corretamente ao e-mail informado na procuração à fl. 53 (@gmail.com). Era ônus da parte acessar seu e-mail e clicar no link. A parte está assistida de advogado, que se presume habilitado para participar da audiência virtual.

Anoto que, ainda que não houvesse revelia, a leitura da contestação (fls. 36/52) demonstra que a matéria fática pertinente não é controvertida. A controvérsia reside na natureza jurídica dos contratos celebrados pelo proprietário com terceiros por meio da plataforma digital se residencial ou comercial e nos limites do alcance da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça. No limite, portanto, a questão da revelia não é relevante para o deslinde do feito, pois a controvérsia é jurídica.

Controvérsia. Os seguintes fatos não são controvertidos: (i) o demandante, proprietário de imóvel localizado em condomínio residencial, aluga-o por meio da plataforma digital denominada Airbnb por períodos relativamente curtos; e (ii) o condomínio proibiu a celebração desse tipo de contrato com fundamento na decisão proferida pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial de nº 1.819.075/RS, aplicando duas multas ao demandante.

As partes expressamente declararam não possuir outras provas (fls. 89/90).

Passo diretamente à análise do feito.

Usos residencial e comercial. O direito se articula através da linguagem.

Dentro da tradição da filosofia analítica, compreender um certo conceito se faz através da análise da maneira pela qual os usuários competentes da linguagem o empregam. Por exemplo, determinar o conceito de finalidade residencial na utilização de um imóvel é analisar os casos mais paradigmáticos aos quais uma determinada comunidade faz referência quando o utiliza. Dito de outra forma, é compreender quais parcelas da prática social aqueles que participam competentemente do jogo de linguagem do direito fazem referência quando o empregam. Os conceitos relevantes para o direito, portanto, não dependem apenas daquilo que foi positivado, mas também do contexto e da compreensão dos valores que os tornam valiosos para os participantes da prática jurídica. Dado seu caráter contextual, a maneira pela qual empregamos conceitos em uma determinada situação não precisa coincidir com o emprego do mesmo conceito por outras comunidades ou em outros contextos.

Embora essas premissas possam soar como uma obviedade, parece-me que é exatamente nessa diversidade contextual do significado dos conceitos jurídicos que reside a chave para compreender a questão posta nos autos. O centro da controvérsia sobre as locações por curtíssimo tempo está numa compreensão parcial da maneira pela qual opera a linguagem, compreensão que cria uma dicotomia estanque entre os conceitos de uso residencial e comercial, dicotomia que, nessa compreensão, não admitiria situações intermediárias. Dito de outra forma, o debate parece ignorar que o caso dos autos não está nas zonas de certeza dessas expressões, mas em uma zona intermediária de penumbra. No emprego da linguagem existem núcleos de sentidos estabelecidos, mas sempre existirá uma zona intermediária de casos que são discutíveis, casos nos quais as palavras não são obviamente aplicáveis nem obviamente descartáveis1.

Os casos centrais de “uso residencial” incluem pessoas relacionadas por laços especiais, familiares ou de amizade, residindo no imóvel, ali realizando suas refeições, descanso, estudo e lazer. Porque o proprietário do imóvel pode extrair dele os frutos civis, ele pode alugar o local para outras pessoas sem que isso descaracterize a finalidade. Uma mesma pessoa pode titularizar dezenas de imóveis, locando todos para indistintos sujeitos. Essa pode até ser sua principal fonte de renda, mas, mesmo nessa hipótese, nossas práticas de direito privado não permitem afirmar que o uso dos imóveis foi desviado de sua finalidade. Afinal, em cada unidade os locatários seguem realizando o que deles se espera (refeições, descanso etc.). Esses são todos casos centrais, casos nos quais ninguém colocará em disputa que o emprego do conceito de uso residencial foi adequadamente realizado.

Os casos centrais de “uso comercial” encerram múltiplas atividades, como a utilização de imóveis por profissionais liberais para o exercício de sua atividade, empresas para a prestação de seus serviços e tantos outros casos de exploração do mercado. Não há dúvidas de que o consultório médico, o escritório do advogado, a oficina mecânica, os hotéis e as pousadas são, todos, casos centrais de uso comercial do imóvel.

Não há dúvidas de que o exercício de qualquer dessas atividades em um condomínio edilício ou em um loteamento fechado, ambos com destinação residencial, caracterizaria uso desviado de sua finalidade.

Uma das maiores dificuldades no emprego da linguagem não está em determinar como lidar com os casos centrais, mas como lidar com as normas nos casos de penumbra. Afirmar que o simples fato de um imóvel ser locado através de plataforma digital por curtíssimo tempo descaracteriza seu uso residencial, transformando-o em comercial, é ignorar que não estamos em um caso central de “uso comercial”, embora tampouco estejamos em um caso central de “uso residencial”. Os que sustentam a existência de uso comercial afirmam que o tempo de locação e a diversidade de locatários no tempo são características típicas de contrato de hospedagem, contrato que é oferecido ao mercado por empresas que exploram o comércio. Os que sustentam a existência de uso residencial afirmam que estão extraindo os frutos civis da coisa e as atividades desenvolvidas pelos locatários não difere do uso ordinário residencial que os demais moradores realizam. Para eles, considerando a autonomia privada, nada os impede celebrar contratos por períodos típicos de locação por temporada.

Todas as características acima são verdadeiras e não é possível enquadrar com perfeição esse tipo de contrato aos rótulos-estanque residencial ou comercial.

Estamos em uma zona intermediária do uso da linguagem e não me parece que “puxar a corda” para um dos lados seja a melhor solução para a controvérsia. A solução, novamente, deve ser localizada no contexto de uso da linguagem pelos atores envolvidos na prática, fornecendo especial papel para a autonomia como valor central do direito privado.

Haverá contextos nos quais não fará sentido defender a ocorrência de um desvio de finalidade no uso do imóvel, tais como ocorre em apartamentos em balneários turísticos ou localizados próximos a hospitais ou centros de eventos. Nesses casos, é até esperado que as unidades sejam locadas por espaços curtos e muitas pessoas adquirem esses imóveis com a finalidade de extrair os frutos civis nesses termos. Locações curtas para aproveitar um fim de semana, acompanhar um enfermo ou realizar um curso não caracterizarão utilização não esperada do imóvel residencial. A comunidade que ali convive entende que esse é o uso ordinário e até se organizará para lidar com os pormenores gerados pela alta rotatividade de pessoas. Os participantes da prática naquele local dificilmente deixarão de reconhecer que os imóveis seguem sendo utilizados para fins residenciais.

Em outros contextos, como condomínios edilícios em locais não-turísticos, a mesmíssima atividade pode caracterizar, para aqueles participantes, desvio de finalidade residencial. O mesmo pode ser dito para os loteamentos fechados do interior paulista, pois utilizados pelos moradores dessa região não preponderantemente para o turismo de lazer, mas para o descanso. Nesse contexto, os participantes interpretarão as curtas locações como abuso no direito de fruir os frutos civis da coisa, em atividade próxima ao contrato de hospedagem. Eles não terão dificuldades em apontar os problemas de segurança e desassossego que a reiteração desse tipo de contrato é capaz de gerar, bem como a inexistência da obrigação de se organizar para atender o uso do imóvel desviado de sua finalidade esperada. A locação aqui, embora não possa ser caracterizada como comercial ela não reúne todos os predicados que os casos centrais possuem, pode ser caracterizada como não-residencial. Essa qualificação será suficiente para caracterizar o desvio de finalidade.

Essa diversidade de avaliações decorre exatamente do fato de esse tipo de contrato se localizar na zona de penumbra do uso dos conceitos. A solução para o impasse deve ser localizada na própria comunidade envolvida e no seu reconhecimento do que conta como conduta esperada para o contexto. Os moradores dos condomínios edilícios e dos loteamentos fechados podem, através de seus órgãos de representação, declarar que esse tipo de contrato viola a forma ordinária de utilização do imóvel, declaração que terá o efeito jurídico de, na prática, qualificar como indevida a locação por curtos períodos. Trata-se, dentro dos limites do exercício da autonomia privada, de manifestação de vontade que explicita o que aquela comunidade entende como uso esperado do imóvel. Importa menos determinar se a locação é residencial ou comercial, mas determinar se ela está sendo realizada dentro das finalidades que aquele conjunto de pessoas entende como adequada e esperada.

...
Não é possível, sem essa manifestação comunitária, qualificar de não residencial a locação aqui tratada. A comunidade deve manifestar expressamente que, naquele contexto e a partir daquilo que ela considera valioso para a convivência, essas locações caracterizam desvio de conduta. Como estamos em uma zona de penumbra, não me parece legítimo tolher o direito individual de propriedade, na sua dimensão de fruição da coisa, sem essa prévia declaração.

Em suma, o simples ato de anunciar um imóvel para locação por curtíssimo espaço de tempo, em plataforma digital ou convencional, não caracteriza uso comercial.

Contudo, a depender da expectativa legítima do contexto do local, essa locação pode caracterizar desvio da finalidade do uso residencial esperado pelos moradores. Pertence às pessoas envolvidas o poder de declarar que esse tipo de contrato extrapola os limites lícitos do exercício do direito de propriedade, declaração que deve estar expressa na convenção de condomínio ou no estatuto da associação que reúne os moradores dos loteamentos fechados.

Recurso Especial de nº 1.819.075/RS. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão paradigmática (Recurso Especial de nº 1.819.075/RS) decidiu, por maioria de votos, que, havendo previsão expressa de destinação residencial das unidades na convenção do condomínio, será impossível a sua utilização para a atividade de hospedagem remunerada2. Os pormenores dos fatos discutidos no acórdão permitem a contextualização da decisão. No caso julgado, a atividade desenvolvida pelos proprietários de três unidades residenciais foi caracterizada como comercial e de hospedagem, proibida pela convenção condominial, considerando: (i) a alta rotatividade no local; (ii) o fracionamento de quartos existentes no imóvel para hospedagem de distintas pessoas estranhas entre si e de forma concomitante e em curto espaço de tempo; e (iii) a oferta de serviços na unidade como lavagem de roupas e internet. Note-se, pois pertinente, que o contexto fático que ensejou a decisão tomada como paradigma era semelhante à criação de um albergue no qual os diversos cômodos dos imóveis eram explorados simultaneamente.

Os proprietários dos imóveis residenciais fracionaram cada um de seus cômodos e ofereceram-nos à locação de diversas pessoas. Essa é uma situação fática muito distinta daquela que tradicionalmente se observa na plataforma virtual Airbnb. O caso central de locação em plataforma virtual é o oferecimento de um imóvel inteiro, ainda que por um período pequeno, para pessoas de alguma forma vinculadas entre si. Não é possível desprezar esse contexto fático, pois ele interfere na correta compreensão do que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça.

Equivocado afirmar que esse acórdão qualificou como atividade comercial toda e qualquer locação realizada por plataforma digital. Ao contrário, o próprio Ministro Antônio Carlos Ferreira, no corpo do acórdão, fez a ressalva de que o destino do julgamento não seria distinto se o anúncio para locação tivesse sido feito através de uma plataforma mais tradicional, como um jornal. O ponto que me parece relevante é o de que, no caso julgado, os proprietários criaram pequeno estabelecimento hoteleiro no interior de edifício residencial. Por esse motivo, a vedação inserida na convenção de condomínio foi considerada lícita pelo Tribunal.

Finalmente, tenho que o desvio de finalidade nesse caso concreto já estava caracterizado pela criação do pequeno empreendimento hoteleiro e sua proibição dispensava qualquer manifestação nos demais moradores do edifício. Os pequenos empreendimentos hoteleiros pertencem à zona central de significado do conceito de “uso comercial” e, portanto, estão vedados pela convenção de condomínio que limitava o uso dos imóveis ao uso exclusivamente residencial.

Convenção condominial. O Condomínio Estância Marambaia, consoante o já decidido pela Corregedoria Geral da Justiça do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, possui a natureza de condomínio3. Ele se organiza internamente, portanto, através de convenção. A convenção aqui analisada não possui declaração expressa dos condôminos de que as locações aqui consideradas caracterizam utilização indevida do imóvel. Segundo a contestação, os representantes do condomínio interpretaram o julgamento já citado do Superior Tribunal de Justiça como uma genérica caracterização de que as locações por curto espaço de tempo são, sempre, uma forma de uso comercial e, portanto, ilícita.

Por tudo o que já consignei nesta sentença, a conduta da parte demandante não deve ser considerada ilícita. Os fatos aqui narrados não possuem semelhança relevante com o precedente do Superior Tribunal de Justiça. Ademais, os participantes da comunidade ainda não se manifestaram sobre o assunto. Ausente vedação expressa, mantém-se incólume o direito de propriedade e o poder do proprietário de celebrar locações para temporada.

Finalmente, os contratos de locação são celebrados por escrito no interior de plataforma digital. Não existe motivo para deixar de reconhecer a validade do contrato celebrado pela plataforma, sendo certo que o locador está agindo dentro dos limites previstos pela convenção de condomínio e pelo art. 48 da Lei nº 8.245/1991.

Multas. O demandante foi penalizado com duas multas nos valores de R$ 685,00 e R$ 1.370,00, em razão das locações realizadas por meio do aplicativo. Ausente qualquer violação legal ou da convenção condominial em razão desse fato, absolutamente descabida a imposição da sanção. O valor da primeira penalidade que já havia sido pago pelo demandante deve ser ressarcido.

Dever de notificar casos de má conduta dos locatários. A parte demandante postulou a condenação do condomínio à obrigação de, na hipótese de mau comportamento dos locatários, imediata notificação para o locador para sanar quaisquer transtornos. O pedido deve ser julgado improcedente. Não existe lei que ampare a pretensão, de tal maneira que não é legítimo, sem violar o princípio da legalidade, condenar o condomínio a tal conduta.

É o que basta para a solução da demanda. O magistrado não está obrigado a rebater argumentos incapazes de, em tese, alterar a solução do litígio (art. 38 da Lei nº 9.099/1995, c.c. art. 489, §1º, inc. IV, do Código de Processo Civil)4.

Dispositivo.

Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a demanda. Declaro a inépcia do pedido condenatório para que os funcionários do Condomínio tratem os futuros e eventuais locadores com urbanidade. No mérito, condeno o Condomínio Estância Marambaia a se abster de impor sanções ou criar empecilhos em razão das locações realizadas pelo demandante por qualquer meio, até que a convenção vede expressamente a conduta. Anulo as sanções impostas pelo Condomínio, nos valores de R$ 685,00 e R$ 1.370,00. Condeno o Condomínio a restituir o valor de R$ 685,00, corrigido desde o ajuizamento e com juros de mora desde a citação. Improcedente o pedido para condenar o Condomínio a notificar os casos de má conduta dos locatários. A correção monetária far-se-á pela tabela prática do Tribunal de Justiça. Os juros de mora serão de 1% ao mês. Sem ônus de sucumbência nesta primeira fase procedimental.

P.I.

Vinhedo, 22 de setembro de 2021.

Fonte: TJSPComentários: (0)