Sobreviventes e familiares de vítimas tentam se reerguer um ano após tragédia
Reconstruir-se apenas um ano após uma das maiores tragédias da história do Ceará tem sido missão diária a quem foi resgatado e a quem perdeu pedaços imensos de si no desabamento – que além de dor e saudade, deixou transformações
Era uma família de cinco, hoje sobram dois para dividir entre si a saudade que ficou. A matemática indigesta engasga na voz de Felipe Silveira, 33, que, um ano depois da partida da mãe, em 2018, perdeu o pai e a irmã em uma das maiores tragédias da história do Ceará: o desabamento do Edifício Andrea, às 10h28 do dia 15 de outubro de 2019. Antônio Gildasio Holanda Silveira, 60, e Nayara Pinho Silveira, 31, foram duas das nove vítimas mortas no episódio, que deixou ainda sete sobreviventes resgatados e inúmeras lembranças que muitos deles preferem nem recontar.
Revisitar a memória, para eles, é como acordar uma dor que, no máximo, tira um cochilo. Nunca adormece. A de Felipe, aliás, padece de insônia. Ele estava em Brasília, no sofá de casa, quando reconheceu em vídeos o muro do prédio onde o pai e a irmã moravam há apenas 15 dias, no 3º andar. “No voo, foram horas absurdamente... É surreal. Não consigo explicar a sensação. A mistura de medo, de esperança, de desesperança. Quando cheguei e vi aquele prédio desabado, pensei ‘meu Deus, não tem condição de ninguém sair vivo daí’”, relembra.
Antes de embarcar, o policial rodoviário federal chegou a ouvir que o pai havia sido achado com vida e estava consciente. “Saí de lá com essa esperança. Cheguei aqui e alguns órgãos oficiais confirmaram, mas não era verdade. Outro dia, fui acordado sabendo que minha irmã tinha sido encontrada e tava indo pro hospital. Também não aconteceu. Isso tudo machucou demais.” Os corpos de Gildásio e Nayara foram retirados dos escombros no dia 17 de outubro. Mas um mês antes, ela já havia se despedido.
“Fizemos uma viagem de família pra Miami, em 2017, e a Naná ficou pedindo muito pra irmos de novo em setembro. Ela tinha sonhado que a mamãe pedia pra nós irmos pro local onde ela tinha sido mais feliz. Ela chorava dizendo ‘irmão, por favor, vamos nem que seja pra passar três dias, preciso muito disso’. Fomos. E 20 dias depois que voltamos, ela partiu. Será que ela sabia que era uma despedida?”, emociona-se Felipe.
Nayara e Gildásio estavam no Edifício Andrea em apartamento emprestado por uma familiar, há duas semanas, de forma provisória. Ficariam até janeiro, quando se mudariam. Não houve tempo. “Quando a minha mãe faleceu, minha relação com minha irmã se tornou de pai e filha. E meu pai se tornou meio que meu filho. Foi um choque muito grande. A gente fica naquela: por que eles não foram pra lá só 15 dias depois? Por que esse desabamento não aconteceu antes?”, questiona Felipe, para quem, além de dores somatizadas, sobrou uma caneca de plástico intacta, com fotos de Nayara bebê, retirada dos escombros.
A família Silveira ainda vive completa na memória e no “aperto do peito” de Paulo Rômulo Bezerra, 60, assim como os nomes de todos os vizinhos que compartilhavam o Andrea com ele, morador do apartamento 102. Naquela manhã, uma ida ao banco o separou da ruína – da qual o filho Davi Sampaio, 23, seria retirado, horas depois. “Quando ele me ligou dizendo que o prédio tinha caído, não acreditei. Ele começou a chorar e a ficha caiu. O Davi faz um ano agora no dia 15 de outubro. Os bombeiros disseram pra ele ficar na posição fetal, pra conseguir sair do buraco. E assim ele nasceu de novo”, ilustra Paulo.
A foto de Davi sob os destroços, sorrindo, enviada para tranquilizar a família, em nada reflete o que o estudante de arquitetura havia acabado de vivenciar. Minutos antes de tentar salvar o gato de estimação, Nino, enquanto o chão se abria sob os pés, os sons de entulho desmoronando fizeram o estudante concluir: “isso aqui vai cair”. “Tive o impulso de botar meu corpo pra fora da porta, dei um passo e me virei pra chamar meu gato. Foi então que tudo desabou. Foi um mix de muita poeira, entulho e emoção. Chorei bastante. Depois de um leve surto, parei, respirei, e liguei pros meus pais”, rememora.
Do caminho entre o banco e o número 2405 da Rua Tibúrcio Cavalcante, Paulo só lembra do desespero que o anestesiava. Os sentimentos hoje são opostos. “Aquilo foi a mão de Deus que segurou meu filho. Até hoje eu agradeço. Hoje eu sou outro Paulo, com o coração mais leve. Aprendi a amar mais e respeitar mais as pessoas, a vida, que é o nosso bem mais precioso. A vida é uma passagem, nós não somos daqui. E daqui pra frente, vou procurar fazer só o bem, sem olhar a quem”, finaliza, endossado pelo filho.
“Esse acontecimento me mostrou que tudo é passageiro, nada é fixo, nada é permanente. Não adianta você se apegar a um local, a objetos, porque não vai durar. Ele eliminou meu apego por certas coisas, e me ensinou a continuar vendo a vida de uma forma milagrosamente bonita. Me intensificou a viver menos no passado, que é história, e no futuro, que é incerto. O agora é uma dádiva, não é à toa que o nome é presente”, poetiza Davi.
O sentimento de gratidão por estar viva também é compartilhado por Cleide Maria da Cruz Carvalho, 61, que atuava como diarista no apartamento 101, o de Maria da Penha Bezerril Cavalcante, 81, outra das vítimas que não resistiram à queda do edifício. “Tava no quarto quando senti o chão descendo, e corri pra cozinha. Não dava mais tempo sair. A sala caiu de repente. Só a cozinha, exatamente onde eu tava, escapou, quando o prédio resolveu parar. Foi um grande milagre”, narra Cleide, que compartilhou com “dona Penha” 21 anos de vida – e, nos últimos minutos juntas, uma oração.
“Senti muito por ela não ter ficado perto de mim, na cozinha, porque aí ela estaria viva. Mas ela não conseguiu correr. Meu resgate foi uma hora depois, eu fui a sobrevivente que teve mais sorte, eu e o Davi, porque orei muito, pedi ao Divino Espírito Santo. Nunca vou esquecer daquele momento, todos os dias eu lembro”, relata a diarista, que ainda acumula, na mente e no corpo, a poeira cinza das sequelas do desmoronamento.
A diarista não tinha carteira de trabalho assinada e, por isso, não constava nenhuma contribuição dela ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Por caminhar apenas com o auxílio de muletas, devido a lesões no pé, e viver à base de medicamentos para amenizar a constante dor nas costas, conseguir um emprego se tornou “praticamente impossível”. A renda, então, vem de ajudas do filho. “Mas quem sofreu o acidente foi eu, não foi ele. Eu tava trabalhando, mas nem o auxílio do acidente de trabalho eu recebi. Então, vou levando a vida como dá”.
Assim como os Silveira e dona Penha, Frederick Santana dos Santos, 30, soterrado enquanto entregava água em um mercadinho próximo ao Andrea; Izaura Marques Menezes, 81, e Vicente de Paula Vasconcelos de Menezes, 87, moradores do 502; Rosane Marques Menezes, 55, filha deles e moradora do 302; além de José Eriverton Laurentino Araújo, 39, cuidador dos pais dela; e Maria das Graças Rodrigues, 53, síndica do prédio, também permanecem vivos como podem: na memória e na saudade dos amores que ficaram.
Gilson Gomes, 53, que fazia compras em mercadinho ao lado direito do Edifício Andrea. Antônia Peixoto Coelho, 72, e João Ycaro Coelho de Menezes, 35, tia e sobrinho, residiam no apartamento 601. Fernando Marques, 20, filho de Rosane e neto de Vicente e Izaura, que morreram na tragédia. Francisco Rodrigues Alves, 59, porteiro do edifício.
Indenizações
No dia 4 de setembro de 2020, a Prefeitura de Fortaleza anunciou o pagamento de R$ 1,78 milhão pela desapropriação do terreno onde ficava o Edifício Andrea. O valor será dividido entre 13 proprietários, proporcionalmente às áreas dos apartamentos. No local, o Governo do Estado pretende construir um quartel do Corpo de Bombeiros.