Quarentena transforma barulho de vizinhos em pesadelo sem fim

Com os nervos à flor da pele e maior tempo em casa, a percepção dos ruídos por parte das pessoas ficou mais aguçada; momento requer bom senso

 

Briga de casal, música alta, crianças brincando, ranger de ferramentas e até uivos oriundos da vizinhança passaram a incomodar mais do que antes. Afinal, a quarentena provocada pela pandemia do novo coronavírus deixou as pessoas mais tempo em casa e com os nervos à flor da pele, transformando todos esses barulhos incômodos do período em uma espécie de pesadelo sem fim. Diante disso, os especialistas são enfáticos: o momento requer empatia e bom senso de todos os lados.

Síndico profissional e palestrante em várias administradoras de condomínios paulistanas, João Xavier recomenda equilíbrio. "Embora a quantidade de pessoas dentro de casa tenha aumentado, o barulho é o mesmo. Só que as pessoas estão cada vez mais sensíveis aos ruídos", complementa.

De acordo com ele, os condôminos começaram a reclamar de tudo, inclusive, do choro de um recém-nascido, quase impossível de ser controlado. Para o especialista, a aplicação de multas ou advertências não cabe em todos os casos, como este e outros envolvendo obras já autorizadas pelos empreendimentos.

Falando nisso, Xavier aponta que as reformas têm sido o principal alvo das queixas. "Em primeiro lugar, as pessoas precisam conhecer as regras dos condomínios. Não há o que fazer quando determinada ação que, eventualmente, cause barulho esteja prevista no regulamento", acrescenta.

Ainda em relação às obras autorizadas, o especialista sugere que, se o reclamante tiver uma videoconferência em determinado momento do dia, o administrador do condomínio combine com o vizinho de interromper o serviço naquele horário.

EVITE CONFLITOS

Segundo Xavier, os moradores devem evitar cobranças entre si. "Isso pode ser interpretado como uma afronta ou sobreposição de direito, a não ser que ambos tenham um bom relacionamento", justifica.

O gerente de uma das maiores prestadoras de serviços para condomínios, em Bauru, que não quis se identificar, estima que as queixas sobre o barulho da vizinhança subiram de 30% a 40% no decorrer da quarentena.

De acordo com ele, problemas como este devem ser resolvidos com bom senso. "Certa vez, uma pessoa fazia aula online em determinado horário e o apartamento de cima estava em reforma. Nós enviamos um supervisor até o local e pedimos que suspendessem as obras naqueles momentos", relata.

ATÉ UIVOS

A moradora de um prédio localizado no Jardim Marambá, que preferiu ter a sua identidade preservada, é uma das que vem sofrendo com o barulho durante a quarentena. "Um vizinho de um dos andares de cima, que aparenta ser adolescente, emite sons semelhantes a uivos, muito provavelmente, porque esteja provocando o cão da família".

Segundo ela, o problema ocorre diariamente, das 9h às 11h. A denunciante acredita que os ruídos apareceram depois que as aulas foram suspensas. Por enquanto, a mulher ainda não procurou o síndico do local.

E, infelizmente, situações como esta não afetam uma única pessoa. A reportagem também ouviu relatos de gritarias de marido e mulher, músicas altas e reformas barulhentas em vizinhanças de diversas partes da cidade, como Parque São Geraldo, Jardim Higienópolis e Vila Cardia.

’Agora, um simples ruído é muito mais do que isso’, reclama morador
Aceituno Jr.

Morador de um prédio situado no Jardim Brasil, David Mantovani, de 31 anos, está desempregado e segue a quarentena à risca desde o seu início. Só que alguns vizinhos do rapaz não têm o mesmo comprometimento.

De acordo com ele, existem muitas repúblicas no local e, frequentemente, David precisa conviver com as consequências das festas até o dia raiar. "Neste momento, um simples ruído é muito mais do que isso, porque eu não tenho como fugir", complementa.

O rapaz também não se conforma com o fato de abrir mão de ver a própria família, sendo que outras pessoas não se esforçam para fazer a sua parte.

Por isso, David procurou os responsáveis pelo edifício tão logo a quarentena começou. "Eles ficaram de notificar os moradores, mas creio que a mudança de atitude dependa da consciência de cada pessoa", constata.

Denúncias de perturbação do sossego dobraram durante pandemia

A quarentena provocada pela pandemia do novo coronavírus deixa muita gente em casa, fato que traz consequências até ao trabalho da Polícia Militar (PM). Conforme informações da corporação, entre abril e junho deste ano, o órgão recebeu o dobro de chamadas envolvendo perturbação de sossego, em comparação com o mesmo período de 2019.

Na época, a PM acolheu 1.941 solicitações do tipo, contra 3.737 nos três últimos meses de 2020. A polícia informa que a população passou a fiscalizar os seus vizinhos, denunciando qualquer sinal de aglomeração por medo da disseminação do vírus. O barulho seria um motivo secundário, mas também incomoda.

Por outro lado, de acordo com o comandante da 1.ª Companhia, que atende a região Sul e o Centro da cidade, o capitão Gustavo Barbosa, as denúncias de perturbação de sossego tiveram uma leve diminuição na sua área de atuação.

A média de solicitações do tipo entre abril e junho deste ano chegou a 160 ao mês. No mesmo período de 2019, o número girava em torno de 170. Contudo, essa queda tem uma explicação naquela região. "A área onde atuo abriga, basicamente, bares e repúblicas. Os estabelecimentos ficaram fechados e os estudantes acabaram voltando para as suas respectivas casas por causa da quarentena. Logo, as chamadas envolvendo perturbação de sossego reduziram nestas regiões", constata.

Paralelamente, o comandante da 1.ª Companhia reforça que a corporação intensificou o patrulhamento em locais onde costuma haver aglomeração, como nas imediações do Alphaville, pertencente à 4.ª Companhia. As operações contam com a ajuda do Pelotão de Trânsito.