Iniciativa foi adotada em condomínios de Águas Claras. Com o tempo, taxa de ?esquecimento? atingiu 40%.

 Condomínios residenciais de Águas Claras, no Distrito Federal, decidiram reduzir o funcionamento de um projeto criado para medir a honestidade da população. A iniciativa gerou resultados positivos por algum tempo mas, segundo os síndicos, o "esquecimento" crescente dos moradores tornou a ideia inviável.

A ideia do projeto é simples: os picolés são deixados em um freezer, e o morador interessado pode se servir e deixar o pagamento em uma caixinha. Não há câmeras, funcionários ou qualquer outro mecanismo de controle.

Em alguns condomínios (veja abaixo), há semanas em que 100% dos picolés são devidamente pagos. Em outros, a taxa de "calote" aumentou de tal forma que os síndicos passaram a trancar os congeladores durante a madrugada. A orientação, dizem eles, veio da empresa que fornece os produtos.

Projeto suspenso

Em um prédio da Praça Tiê, o projeto teve de ser encerrado há cerca de três semanas. Moradora do local, Roberta Landin conta que a síndica enviou um e-mail aos moradores explicando a decisão. Segundo Roberta, o início do projeto foi inspirador.

"Os primeiros resultados foram ótimos, a inadimplência estava por volta de 6%, mas com o passar do tempo foi subindo. A gente acha que as pessoas vão respeitar, vão se animar, mas não foi bem assim."

A ideia surgiu no Distrito Federal em 2016, na Universidade de Brasília (UnB). Na época, os alunos do curso de economia também se disseram surpresos com o índice de "esquecimento" dos consumidores, que atingiu 34,2% dos picolés retirados do congelador em um único dia.

Alunos da UnB ’testam’ honestidade com venda de picolés sem atendentes
Em um outro condomínio, na Rua Babaçu, a taxa de esquecimento alcançou 40%. O freezer teve o funcionamento alterado e só vai ficar aberto nos horários de maior movimento – durante a semana e em horário comercial. A administração do condomínio, contudo, não descarta seguir o exemplo da Praça Tiê e encerrar o projeto.

Um condomínio na Avenida Araucárias também limitou o acesso ao freezer durante as madrugadas. A estudante Carol Farias conta que, na última semana, 97 dos 440 picolés "vendidos" não foram pagos – uma taxa de 22%. Esse foi o pior índice desde que o projeto começou, em dezembro de 2017.

Apesar do crescimento percentual, Carol afirma que os moradores inadimplentes não são cobrados pessoalmente ou por meio de comunicações oficiais. A estudante diz acreditar que essa é uma decisão acertada do condomínio.

“Acredito que o foco do projeto não é esse, mas testar a honestidade. Tem que ser revista alguma forma de incentivar a honestidade, não com punição e vergonha de cobrar o valor.”
Taxa de inadimplência do projeto Picolé Para Todos


Quem são os inadimplentes?

Na maioria dos residenciais, é difícil traçar o perfil de quem não paga pelos picolés que consome.

Roberta Landin, do condomínio na Praça Tiê, desconfia das crianças. "Na reunião, a síndica disse pros adultos não pegarem para pagar depois, porque as crianças podem ver e querer fazer. Tinha criança que abria o freezer, pegava cinco e distribuía. Não sei se depois elas pagavam", conta.

Já no caso do condomínio da Avenida Araucárias, Carol Farias acredita na hipótese oposta. "Várias crianças procuram o síndico contando que o pai de um coleguinha pegou picolé e não pagou", diz.

A estudante imagina que visitantes peguem os picolés por engano durante festas, achando que a sobremesa faz parte do cardápio.

Bom exemplo

Um residencial na Rua 20 Sul, também em Águas Claras, teve a menor taxa de esquecimento encontrada pelo G1 durante o período: 5,2%. Na terceira semana de fevereiro, o índice de esquecimento do condomínio foi de 0% – ou seja, nenhum comprador "deu calote" no projeto.

A professora Alessandra Campos, moradora do local, não sabe explicar ao certo o motivo do alto percentual em outros condomínios, mas está satisfeita com o resultado de onde mora.

“Já pensei se o alto índice de esquecimento é porque o condomínio tem muita criança, mas no meu tem bastante. Entrada de pessoas externas também não é, porque aqui tem seis salões de festa", pondera.

Experimento ’viciado’

Especialista em Ética e Filosofia Política e professor da UnB, Rogério Basali afirma que o índice de desonestidade pode ser ainda maior do que o apontado. "Muitas dessas pessoas só não entram para a taxa de esquecimento porque sabem que se trata de um experimento. Não significa que sejam mais honestas", diz.

Basali também diz acreditar em um "efeito manada", que levaria pessoas anteriormente honestas a seguir o exemplo de quem burlou as regras. Um dos motivos para isso, segundo ele, seria a ausência de punição para os infratores. "Na medida em que um faz, o outro se vê no direito, quase na obrigação de fazer também, senão ele é o bobo que não levou vantagem", diz.

Ao G1, o professor disse acreditar que o experimento confirma uma impressão do senso comum, de que o discurso contra a corrupção está em voga, mas nem sempre se reflete nas atitudes da população.

"O mal não tem raízes profundas, acontece exatamente na superficie. Aqueles que fizeram determinada ação, não fizeram necessariamente porque são demoníacos, mas porque o mal se instalou no cotidiano."