PODE VIRAR LEI

Denunciar violência doméstica pode virar tarefa de síndicos: entenda o projeto aprovado e o que pensam autoridades

O que você faz se souber que um vizinho bate na mulher ou maltrata filhos ou um idoso? O correto é denunciar. Esta é uma das mais eficazes medidas para combater a violência doméstica. E foi pensando em reforçar essa cultura que deputados gaúchos aprovaram o projeto de lei que determina que responsáveis por condomínios comuniquem a polícia sobre agressões contra mulheres, idosos, crianças e pessoas com deficiência. Só na Capital, a determinação atinge a cerca de 14 mil síndicos. O anonimato está garantido nas denúncias.

Autoridades comemoram a iniciativa, mas alertam: essa não deve ser uma obrigação apenas de síndicos, mas de todos moradores, toda a sociedade.

— Independente de lei, toda pessoa deve ter essa iniciativa. A gente tem de meter a colher, sim. Na situação do marido com a mulher, do idoso com o filho, tem que haver a participação da sociedade para proteger a pessoa vulnerável. Eu entendo essa legislação nesse contexto, da necessidade de que nós possamos, juntos, colaborarmos para evitar essas agressões que acontecem no dia a dia dos lares brasileiros — destaca a procuradora Angela Salton Rotunno, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa dos Direitos Humanos do Ministério Público (MP).

Quando foi proposto, o PL 71, de autoria da deputada Franciane Bayer (PSB), assustou a categoria de gestores de condomínios pela multa que previa para casos de descumprimento da norma. Mas a sanção foi retirada antes da aprovação da proposta. Além de determinar que síndicos ou administradores denunciem situações de violência, o projeto também prevê que cartazes sejam afixados para divulgar o teor da norma.

— Nossa preocupação era a multa, pois obrigações já existem previstas no Código Civil. Aliás, são obrigações para todos os moradores, todos são corresponsáveis — diz Mauren Gonçalves, presidente da Associação de Síndicos e Subsíndicos de Condomínios do Rio Grande do Sul (Assosindicos-RS).

No cargo há quatro anos, Mauren recorda de apenas três casos em que síndicos buscaram orientação sobre como agir em relação a situações de violência que estavam acontecendo entre vizinhos. No conglomerado onde é síndica, desde o começo da pandemia já existem cartazes com fones para este tipo de denúncia.

— O projeto é bom, pois reforça a obrigatoriedade de colocar cartazes e circulares para conscientizar toda a comunidade — atesta a presidente da Assosindicos.

Estatísticas realçam a importância de cada um estar atento ao que ocorre na vizinhança: segundo o MP, entre 80% e 90% desse tipo de caso de violência, contra pessoas vulneráveis, ocorre dentro dos lares. Para quem tem medo de se identificar, se envolver em um processo judicial ou até se indispor com o vizinho denunciado, a boa notícia é de que o anonimato segue garantido, tanto nas denúncias previstas pelo projeto de lei quanto em qualquer outro caso.

Conforme o delegado Thiago Albeche, do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis, a maior parte das denúncias é anônima, o que protege os denunciantes e ajuda o trabalho da polícia com as informações que são repassadas.

— Todas as formas de incentivo a denúncias são bem-vindas — diz o policial sobre o projeto de lei.

Quanto a eventual responsabilização de síndicos com base no projeto de lei, o delegado explicou que não existe uma responsabilidade penal objetiva por parte deles, ou seja, não basta que exista um crime no condomínio para que, caso não notificado pelo síndico, gere a responsabilidade criminal automática dele:

— É preciso uma omissão voluntária e, ainda, uma avaliação sobre o quanto essa omissão possa contribuir para casos de violência. Esse, pelo menos, é o aspecto penal que é analisado. Uma pessoa que tenha a obrigação legal de proteção (pai ou mãe em relação ao filho, por exemplo) que sabe de um fato e não denuncia, pode responder por ofensas às vítimas. Ainda não sabemos ao certo como será controlada essa obrigação que está sendo criada.

O projeto foi aprovado no dia 30 de setembro e está na fase de redação final na Assembleia Legislativa para depois ser enviado ao governo para análise e sanção do governador Eduardo Leite. A expectativa é de que isso ocorra na próxima semana.

— Estou otimista pela sanção do governador e acredito que vai dar uma grande diferença nos condomínios com a denúncia pelo síndico. Mas todos nós podemos e devemos fazer a denúncia. As pessoas ficam com receio de estar interferindo no convívio da família, mas temos que entender que a violência doméstica está acima disso. E não é um tema só da pandemia. Essa violência está na sociedade atingindo a todos e nossa denúncia pode salvar uma vida — diz a deputada Franciane Bayer.

Idosa teve apartamento invadido

Ocorrências policiais mostram que muitos vizinhos já têm desempenhado o papel de denunciantes de violações contra pessoas vulneráveis. Na delegacia do idoso, um caso recente comoveu as equipes. Uma vizinha desconfiou do movimento no apartamento de uma idosa que morava sozinha e que não tinha familiares em Porto Alegre. Avisou a polícia. Um guardador de carros da região simplesmente havia se mudado para a casa da idosa, levando a esposa. Eles passaram a se apropriar de bens e a maltratar a vítima, que vivia reclusa. A idosa foi resgatada por policiais e hoje vive sob os cuidados de uma sobrinha no Interior. O casal foi indiciado pela polícia.

— Ela às vezes pede que a sobrinha ligue para a delegacia para dar notícias aos policiais. Ficou muito agradecida. A denúncia feita por vizinhos é essencial na proteção ao idoso. Muitas das vezes, o idoso está preso em casa com o agressor e por questões próprias da idade não tem condições de pedir ajuda, seja por falta de mobilidade física, seja por não conseguir fazer uso de tecnologia. A sociedade precisa entender seu papel de falar pelo idoso — destaca a delegada Cristiane Pires Ramos, titular da Delegacia de Proteção à Pessoa Idosa de Porto Alegre.

Conforme a major Karine Pires Soares Brum, coordenadora estadual das patrulhas Maria da Penha, com o avanço da pandemia aumentou a dificuldade de as mulheres denunciarem, mas com a criação de novos canais foi percebido um aumento de denúncias por terceiros. A oficial recorda de uma situação recente em que houve denúncia de agressão a uma mulher. Uma patrulha foi deslocada, mas ela não atendia o interfone. Os policiais então fizeram contato com o síndico, que facilitou a entrada dos PMs no condomínio. Chegando ao apartamento, o agressor estava no local e foi preso.

A major destaca a importância da colaboração dos administradores de condomínios nestes casos, já que o acesso às unidades dentro do espaço é mais difícil. Segundo Karine, a maioria denúncias é anônima:

— Importante ressaltar que as pessoas não precisam se identificar, o sigilo está protegido. O que importa é a pessoa passar o máximo de dados possível, tudo que souber, como detalhes do local, das pessoas envolvidas, se tem possibilidade de ter arma de fogo no local. Isso vai ajudar a orientar a ação da patrulha.

A diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) e titular da 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (1ªDeam), delegada Tatiana Bastos, destacou que canais alternativos foram criados durante a pandemia e que houve muita adesão, com aumento de quase 300% nas denúncias.

O que diz o Projeto de Lei (PL 71)

Dispõe sobre comunicação, aos órgãos de segurança, sobre eventual ocorrência ou indício de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, em condomínios residenciais do Rio Grande do Sul.

Exemplos de casos denunciados por vizinhos

  • Denúncia recebida por liderança comunitária da região na qual informou que vizinhos denunciaram vítima mulher em situação de cárcere privado. Polícia Civil fez a prisão em flagrante do agressor. Ao chegar no local, vítima de 21 anos, companheira do suspeito, havia conseguido fugir e buscar abrigo na casa de vizinhos. O suspeito foi preso e indiciado por lesão corporal e cárcere privado.
  • Disque denúncia de vizinhos relatando sequência de gritos e discussões em apartamento de condomínio na zona norte da Capital. Equipe da Delegacia da Mulher foi ao local para investigação preliminar. Vítima, uma mulher, 22 anos, grávida de nove meses, alegou ser constantemente agredida pelo companheiro de 20 anos, jogador de futebol profissional. Houve relato de uso de drogas ilícitas pelo suspeito, que não estava no local. Vítima fez registro o policial e teve acompanhamento pela rede de atendimento. Suspeito indiciado por lesão corporal e perturbação da tranquilidade. Polícia comunicou o ao clube contratante do suspeito em razão da notícia do uso de entorpecentes.