Relatos de "perturbação da ordem" se multiplicam com o distanciamento social, mas é possível melhorar o conforto acústico de casa com medidas simples

O caso aconteceu no primeiro mês da pandemia em um condomínio do bairro Menino Deus, mas, com sutis diferenças, se repetiu Porto Alegre afora. Motivado pelas cantorias nas sacadas na Itália, um morador comprou um megafone e, todos os dias, ia para a janela por volta das 18h animar os vizinhos. Entre as interações, puxava parabéns aos aniversariantes e aceitava pedidos de música para tocar no aparelho de som. Até o dia em que não o fez.

Via WhatsApp, moradores descobriram que ele fora repreendido pelo síndico, a pedido de outros moradores. Dividiu-se o condomínio. Enquanto uns concordavam com a determinação de silêncio, outros organizaram protestos. Panos de luto foram colocados na janela e panelaços foram mobilizados às 18h até que o animador voltasse à janela.

– No final das contas, a maioria decidiu por ele voltar. Tinha umas senhoras que passavam o dia escolhendo que música pedir. De fato, animava o dia delas. Mas agora são apenas cinco minutos, em respeito a quem está trabalhando em casa – conta uma das moradoras.

Picuinhas semelhantes, de acordo com autoridades e associações de síndicos da cidade, se repetiu em múltiplos bairros de Porto Alegre. De acordo com a Brigada Militar, as reclamações por “perturbação da ordem” subiram 32% ao longo do período de distanciamento social.

Na Zona Norte, por exemplo, brigadianos de setores administrativos foram deslocados para a madrugada, a fim de dar conta das ocorrências. Uma delas acabou em tragédia: no Jardim Itu-Sabará, em 17 de maio, um vizinho matou outro, de 37 anos, após uma discussão por música alta.

– Todo mundo já tinha passagem pela polícia naquele episódio. Foi um caso em que dois homens resolveram disputar para ver que era o mais brabo por uma bobagem. Foi um caso extremo, mas há muitos outros. As pessoas estão com nervos a flor de pele – conta o tenente-coronel Fernando Gralha Nunes, comandante do batalhão responsável pelo local à época, hoje à frente do 9º Batalhão de Polícia Militar.

Aquela ligação que normalmente seria para o síndico, vai direto para a Brigada. E como nós temos de tomar providências para todas as ocorrências, às vezes somos “punidos” pela nossa própria eficiência. Quando veem que nós vamos mesmo ao local, aí espalham nos grupos e o pessoal nos liga mais ainda.

Síndicos consultados por GaúchaZH confirmam o que chamam de “tempestade perfeita” entre vizinhos, termo da meteorologia quando múltiplos fatores colaboram para uma calamidade. São eles: o tédio do confinamento, a quantidade subitamente muito maior de gente em casa (especialmente crianças fora da escola), a necessidade de silêncio nos home offices, a falta de outros lugares para desopilar dos problemas domésticos e a migração dos shows presenciais para as lives. Além do empoderamento dos chatos de condomínio.

– Aquelas pessoas meio solitárias, que já reclamavam de tudo, agora têm muito mais do que reclamar e estão a mil. Nós síndicos sempre fomos meio psicólogos, mas agora mais do que nunca. Primeiro, precisa fazer a senhora do andar debaixo entender que toda criança faz algum barulho. Depois, ir lá conversar com a mãe da criança para ela ao menos limitar o horário do patinete no corredor – exemplifica Mauren Gonçalves, presidente da Associação dos Síndicos do Rio Grande do Sul e administradora de 10 condomínios.

Os entrevistados enxergam ainda um componente extra nas reclamações da pandemia. Como as aglomerações estão proibidas por conta da proliferação do coronavírus, vigiar o comportamento dos vizinhos virou uma missão. E muitos abusam desse poder.

– Aquela ligação que normalmente seria para o síndico, vai direto para a Brigada. E como nós temos de tomar providências para todas as ocorrências, ainda que priorizemos as mais graves, às vezes somos “punidos” pela nossa própria eficiência. Quando eles veem que nós vamos mesmo ao local, aí espalham nos grupos deles e o pessoal nos liga mais ainda. Mas já aconteceu um caso de chegar lá e o culpado ser um saxofonista contratado pelo próprio prédio – relata o tenente-coronel Nunes.

Segundo o psicanalista Luciano Mattuella, não é difícil compreender os mecanismos que nos deixam mais suscetíveis a reclamar do vizinho em um momento como o atual:

Embora inconsciente, existe a inveja. A pessoa se sente insultada quando enxerga outra pessoa desrespeitando uma regra enquanto eu estou me sacrificando para cumprir
LUCIANO MATTUELLA
psicanalista

– Um deles, ainda que inconsciente, é a inveja. A pessoa se sente insultada quando enxerga outra pessoa desrespeitando uma regra enquanto eu estou me sacrificando para cumprir. Eu também gostaria de estar me divertindo fazendo uma festa em casa, então me torno mais intolerante com a diversão do vizinho – explica.

Porém, a experiência de lidar todos os dias com esse tipo de problema, segundo Mauren, mostra que não é tão difícil assim resolvê-los sem envolver muitas pessoas e acirrar tanto os ânimos. Há, por exemplo, uma série de melhorias dentro das próprias casas que podem deixá-la com mais “conforto acústico” (veja o gráfico abaixo). E antes mesmo de contatar o síndico para resolver um problema, Mauren ensina um truque simples.

– Se colocar por alguns instantes no lugar do outro. Isso vale tanto para quem está fazendo o barulho, que deve pensar nos que estão dormindo, trabalhando e tudo mais, quanto nos que estão incomodados. Será que eu, no lugar do outro morador, conseguiria fazer o cachorro parar de latir sem ir pra rua? Nesse momento, mais do que nunca, é preciso bom senso.