Vida de porteiro

Porteiros do Rio contam ?causos? de prédios icônicos

Eles abrem a porta, ajudam a carregar sacolas, seguram o elevador. Porteiros são os olhos e ouvidos de edifícios que servem como lar para milhares de pessoas no Rio. Alguns dos mais icônicos imóveis do Rio têm porteiros que já presenciaram inúmeras situações curiosas. É o caso dos porteiros do Edifício Prefeito Frontin, mais conhecido como “Balança, Mas Não Cai”, no Centro. Sérgio Murilo tem 47 anos e há 13 é porteiro do prédio.

— Tenho orgulho de fazer parte da história do Balança. Quando falo que trabalho aqui, me perguntam se balança mesmo — diz o morador de Japeri, que joga para um colega a responsabilidade de contar acontecimentos curiosos:

— História é com o Renato.

Renato Nascimento, de 64 anos, há 28 mora no Balança e virou porteiro há 15. É cumprimentado por cada um que entra ou sai. Aos 20 anos veio do Rio Grande do Sul e, depois de passar por outros endereços, foi apresentado por um corretor ao Balança Mas Não Cai.

— Falei: “Nossa, mas isso é um favelão”. Mas o corretor insistiu para eu ver o apartamento e acabei amando. Não saí mais — diz Renato, que fez jus à indicação de Murilo e conta “causos” do prédio: — No Natal, dois bêbados se estranharam num bar aqui perto. Só que ambos moravam no Balança! Um achou que o outro o estava seguindo e eles deram para brigar aqui na portaria. Pegaram a árvore de Natal e acabaram com toda a decoração natalina. Não sobrou galho para contar história — ri.

Outrora conhecido como palco de atividades ilícitas, o Balança virou um prédio de família, Renato garante:

— Mas até hoje vêm alguns rapazes procurar prostitutas. Aí explico que não tem mais isso.

Nem tudo são flores na vida dos bravos guerreiros que protegem os prédios. José Gregório da Silva, de 42 anos, já sofreu tentativas de agressão. É que ele guarda o Edifício Venâncio V, onde morava o ex-governador Sérgio Cabral, hoje residente no Complexo Médico Penal de Pinhais, no Paraná. O luxuoso edifício carioca, no Leblon, foi palco de inúmeros protestos.

— Tive medo. Tacavam pedras na portaria — revela José, morador de Caxias.

Hoje, tudo voltou ao normal, conta ele, que raramente vê a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo, em prisão domiciliar.

— Minha convivência com a família Cabral sempre foi profissional e respeitosa.

Na Gávea, o Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente, o Minhocão, sobre o Túnel Acústico, tem 308 apartamentos e 2 mil moradores. Um deles fez um pedido curioso ao porteiro Thiago Santos, de 31 anos:

— Ele pediu para receber uma encomenda, mas não disse o que era. Tomei um susto. O pacote tinha um vibrador enorme. No dia seguinte, o morador estava com sorriso de orelha a orelha! — diverte-se Thiago, que, em 1 ano e meio no posto, não coleciona tanta história quanto Renato, que faz planos:

— Estou prestes a me aposentar. Vou escrever um livro sobre os causos do Balança.

História não vai faltar.

Livro tira invisibilidade

O dia do porteiro é comemorado só em 9 de junho, mas o jornalista Aydano André Motta não quis esperar a data para homenageá-los. O livro “Da minha porta, vejo o mundo” (Editora Portunhol) lançado, no mês passado, conta histórias de 12 porteiros nordestinos que trabalham em edifícios residenciais do Rio. Com idades entre 31 e 83 anos, eles são retratados pelo fotógrafo Paulo Marcos de Mendonça Lima e têm suas trajetórias narradas por Aydano, com a colaboração do também jornalista Mauricio Fonseca.

Livro lançado no mês passado Livro lançado no mês passado Foto: Reprodução
— É impressionante como a gente invisibiliza essas pessoas — diz Aydano. — A gente olha, mas não vê. A pessoa está ali o dia inteiro e você não sabe nada dela. Vejo meu porteiro muito mais do que vejo a minha mãe. No entanto, eu não sabia nada da vida dele.

Reunindo histórias de porteiros de bairros como Tijuca, Olaria, Glória, Botafogo e Barra, o livro busca o humano por trás das bancadas das portarias.

— Tem porteiro que veio para o Rio de pau de arara e hoje é dono de apartamentos — exemplifica Aydano.

Amadeu Matias: “Feliz porque história cativou o autor” Amadeu Matias: “Feliz porque história cativou o autor” Foto: Paulo Marcos de Mendonça Lima / Reprodução
O convívio com os moradores também é representado no livro. Sylas Andrade, diretor da Portunhol e idealizador do livro, conta uma situação de amizade entre um porteiro e uma moradora:

— Por fazer companhia a essa senhora, o porteiro de um prédio em Copacabana acabou entrando no inventário dela. Ele herdou um terreno quando ela morreu.

Capa do livro, o porteiro Edvaldo Cândido, de 57 anos, nascido na cidade de Esperança, na Paraíba, veio para o Rio só com o certificado de reservista. O primeiro emprego foi num mercado em Ipanema:

— Ralava muito e dormia em um cubículo até meu irmão me chamar para trabalhar em um prédio em Copacabana. Fiquei lá por 4 anos e com a indenização, voltei para minha terra para terminar de construir a casa dos meus pais.

Depois de arrumar tudo, Edvaldo voltou para o Rio e passou a trabalhar em um prédio no Jardim Botânico, onde já completou 35 anos.

— Tenho muito orgulho da minha história e de tudo que construí como porteiro — diz.

As histórias de vida dos dos personagens do livro parassem se confundir. A maioria deles veio do Norte e Nordeste do país para tentar uma vida melhor. O paraibano Nelson Teixeira de Lima, de 65 anos, era filho de fazendeiro e começou a trabalhar com gado aos 9:

Nelson: paraibano veio para o Rio aos 17 anos Nelson: paraibano veio para o Rio aos 17 anos Foto: Paulo Marcos de Mendonça Lima / Reprodução
— Aos 17, quando o meu pai morreu, a coisa acabou ficando difícil e vim para o Rio. No início, fiquei na casa do meu tio em Parada de Lucas. Ele me ajudou a conseguir a trabalhar como faxineiro em um prédio na Av. Delfim Moreira, em Ipanema. Isso já faz quase 40 anos — conta o porteiro, que recebeu o convite para participar do livro através de um amigo do autor: —Me senti prestigiado. As pessoas do meu próprio prédio me viram até no jornal O Globo.

Já Amadeu Matias, de 54, nascido no Ceará, não teve uma história diferente. Antes de vir para o Rio, em 1981, teve que cuidar de gado.

— Nós porteiros temos vidas muito semelhantes, mas sou feliz porque a minha história cativou o autor — diz Matias, que trabalha em São Conrado.

De Serra Branca, na Paraíba, veio Cristiano Félix de Lima, de 41:

Cristiano Félix, personagem do livro, corre no Aterro Cristiano Félix, personagem do livro, corre no Aterro Foto: Paulo Marcos de Mendonça Lima / Reprodução
— Conheço o Aydano há muitos anos e ele me convenceu a contar a minha história, mas acredita que ainda nem li?

O livro valorizou a profissão, acredita Geraldo Ferreira, de 42 anos:

— Nasci em Caiçara, no semiárido paraibano. Não tinha nada lá. Três irmãos tinham vindo trabalhar no Rio como porteiro e me trouxeram. Cheguei em 1993 e passei a trabalhar num condomínio em Vila Isabel. Sou muito apaixonado por futebol e ouço muito rádio. Como todo mundo do prédio onde trabalho sabe que sou flamenguista, eu que levava os meninos ao Maracanã. Fiquei honrado (em participar do livro) porque deu um destaque positivo para a minha profissão.

Geraldo, apaixonado por futebol, levava os meninos aos jogos Geraldo, apaixonado por futebol, levava os meninos aos jogos Foto: Paulo Marcos de Mendonça Lima / Reprodução
Outro colega de profissão, Amadeus Corrêa Lima, de 57 anos, ficou feliz em se tornar personagem:

— Nasci no sertão do Ceará. Passava muita dificuldade e com 18 anos fui tentar a vida em Brasília. Fiquei três anos lá. Tu tinha um irmão que trabalhava no Rio e me deu apoio para vir. Consegui emprego num edifício residencial na Barra. Aqui constituí família, tenho dois filhos. Comecei a jogar bumerangue na praia e acabei virando atleta. Meu sonho é participar de campeonato. Sou muito feliz por ser personagem de livro. Não me sinto invisível, e isso é lindo!